12 de outubro de 2010

Relendo Balzac – a mulher de 30.

Ao som de “I’ll Take You there” – The Staple Singers

Trinta anos é uma idade importante para uma mulher. Porque o que acontece - com a maioria delas - é que percebem que são mulheres ou muito bacanas, ou muito deprimentes e então decidem experimentar mais da vida, ou dar um jeito nela.

Nessa altura, ela (a mulher de 30 e poucos), já possui algum charme. Um trejeito bonitinho que ficou da adolescência, um ar mais confiante que ganhou com a “substância” adquirida (expressão sabiamente usada pela querida Tia Evinha, que se referia assim sobre as mulheres que sabem o que querem), alguma inteligência emocional, que veio depois de inúmeras mancadas amorosas.

A mulher de 30 é uma arma perigosa e pronta para disparar. São vivas e felizes- mesmo quando estão tristes, porque sabem que felicidade realmente não passa de um estado de espírito. São mais legais que as mulheres de 22, porque são gostosas ainda e mais experientes- em vários assuntos. Isto é algo que uma mulher balzaca deve confiar. Muito mais do que em cosméticos. Aliás, a confiança é fundamental nesta idade.

Neste estágio da vida, a mulher já acentuou a sua “tônica”. Uma espécie de escala que vai desenhar a sua personalidade. Notas mais suaves, mais pesadas, escuras, intensas, desleixadas. Não importa qual, toda mulher tem mais propriedade para alguma coisa ou para outra. Encontrar o próprio tom é a busca, até que um dia, a gente (ops), elas, se olham no espelho e sabem exatamente que tipo de mulheres se tornaram. É a artimanha para conseguir conviver consigo mesma. E o que os caras chamam de “ela não era assim antes”. Porque o homem que acompanha a transição de uma mulher, que passa dos vinte e sorridente poucos anos, aos trinta e complexos anos de idade, deve se sentir um grande sortudo. Nem todos conseguem perdurar ao vai-vem de hormônios e desejos.

Sinceramente, admito que ao entrar nos trinta, como num passe de mágica benéfico, a vida se tornou menos urgente e mais progressiva. E isso é ótimo quando se trata de excessos. Porque mulheres de 30 se sentem à vontade pra lembrar do “pé na lama” do passado, e fazer disso um bom dosador. Sabem que tem de ficar atentas, mesmo quando decidem que vão chutar o balde (de novo) de vez. Dosam tudo. Sabem que relações românticas muito turbulentas podem acabar com o resto da vida. Que a mãe, pode ser ou não, um problema a estudar. Que precisa comer legume e salada para não precisar ir na academia mais do que duas vezes por semana (ou nenhuma), e comer de vez em quando algo que encha os olhos e o ego. E que ressaca se cura com banho quente (frio em alguns casos), canja e torradinha. E...bem... uma coca-cola, ou suco de melancia, dependendo da aptidão.

O desequilíbrio emocional da trintona é menos evidente. A histeria, o mau humor, a paranóia e autopunição podem ser quase imperceptíveis (para leigos). Mas quando a “tônica” de sua personalidade vem à tona é de enlouquecer qualquer santo. Elas demonstram as mais horripilantes coisas que sentem. Tornam-se monstras, juízas, sádicas torturadoras. O olhar inquisidor, o silêncio letal, a agressividade guardada nas retinas. Porque na casa dos vinte, elas são gritonas, na casa dos trinta, são vingativas. Se mal resolvidas, chefes e esposas de 30, geralmente são “o inferno do meu ódio” (com sotaque do nordeste, por favor).

Nessa fase, seus companheiros são homens maravilhosos.

Maridos e amantes: os que têm a idade perfeita para elas. Mais jovens e viris, para as mais seguras. Mais velhos e gentis, para as que pensam que ainda são Julietas. Cafajestes e ingratos, para as que precisam acordar pra vida (antes de chegarem aos quarenta).
Amigos: gays sãos os melhores. Cafunésinho de mão masculina com a sensibilidade de uma melhor amiga. Bonitos, gostosos e malhados para colocar o astral pra cima. Intelectuais, ótimos companheiros de drinks; e as “biba-véia”, verdadeiras mães judias.

Amar uma mulher nesta fase da vida poder ser uma boa experiência. Mansas, preguicentas, caladas na medida, solícitas e companheiras. Rebeldes e dominantes, quase sempre de um modo sutil e paciente. São mulheres mais plenas, e plenas de que é necessário ter paixão para começar o dia. Porque a paixão nessa idade é preciso e precisa. É tirana. Reina absoluta em todo corpo, como pensamentos pecaminosos. E que pensamentos! Intensos, elaborados... A paixão nessa fase da vida é vital, porque sei lá o que acontece, uma espécie de averiguação de que já se foi um terço da vida, e o que urgia, agora precisa ser constante; pelo menos periódico.

Uma mulher de 30 é alguém para se estar num dia cinzento fumando na janela. Segura de si, sem medo de se definir. Inteira. Tenra. Ardida. Sôfrega. Invencível.

23 de agosto de 2010

Concentraivos irmãos!

A falta de concentração que nos invade às vezes é de morte, não é mesmo? Quando um autor não consegue concatenar as idéias, o melhor tema a versar, é a falta delas. Um pouco clichê, sabemos disso, eu e meu senso crítico, mas acontece que há dias a concentração foi pra lá não sei onde, e então começo me sentir culpada em não dividir nada com meu raro (mas fiel) público.

Me pergunto nesse momento de total falta de inspiração para “cronicar”, o que faz um médico, um engenheiro, um dentista... Não vamos tão longe, um atendente da padaria quando isso lhes acontece?

Imagina a velhinha entrando no consultório do seu geriatra. Começa a tirar da bolsa as diversas bulas de seus remédios favoritos e contar sobre as ultimas aventuras da cadelinha Brigite, seu motivo de alegria nesses empoeirados oitenta e picos anos. O médico então levanta da cadeira, vai até a janela, acende um Malborão vermelho e diz: “Olha Dona Ruth porque a senhora não vai pra casa cuidar da sua vida e para de me encher o saco?” Dona Ruth certamente teria um colapso ali mesmo e então, o médico se veria realmente inspirado a trabalhar.

Ou quem sabe o mestre de obras chegando para o engenheiro responsável pela obra pra falar sobre a viga que está pessimamente colocada. Da salinha secreta, atrás de mesa cheia de plantas a serem consultadas, o pobre pião visse o chefe perdido no fla-flu. Ou o pobre menino apavorado com a boca inchada, no momento de tirar o primeiro siso, e o dentista começasse então a filosofar com aquela infeliz broca na mão. A cada momento em que se aproximasse com o instrumento da boca do menino, recuasse, lembrando do momento em que percebeu que colônias de bactérias são como a sociedade brasileira. “Sempre acham um jeitinho de se reprocriar”.

E pior, imagina, você chegando à padaria da esquina e pedindo um pãozinho francês e o atendente lhe perguntando: “O que você quis dizer com isso?” Você só quer um pão oras, como assim? Mas ele insistiria em lhe perguntar por que essa é a sua opção do dia, e porque não o pão português, que afinal também é deveras saboroso.

A máquina precisa funcionar, mesmo quando nos sentimos vazios, certo? Certo. Mas difícil. Às vezes é mais fácil ser um corpo flutuante do que uma cabeça pensante. E isso acontece com qualquer mortal. Não? Mas é nesse momento, em que precisamos fazer com que as coisas funcionem, que devemos deixar as “seres humanidades” de lado. Focar no que é preciso. Afinal, como ficarão as velhinhas solitárias sem seus queridos Docs para ouvir suas lamúrias cotidianas. Ou, o que serão dos funcionários tarefeiros, sedentos por uma ordem. Ou, o que serão dos pobres clientes, que apenas esperam seu misto quente no balcão, sem querer compartilhar sua opinião às sete da manhã na padaria da esquina. O que será daqueles que buscam na literatura o refúgio para todas essas dúvidas, que nem mesmo a literatura pode aplacar.

Tem dias que é isso mesmo. Apenas estar, o ser fica enfurnado em algum lugar escondido da alma.

10 de agosto de 2010

Haikai pobre do desejo.


Desejo: o avesso da razão.
Maldito equilíbrio!
Quando se ganha um, se perde o outro.

3 de agosto de 2010

A poesia nasce do espanto.

Falando em Parati...
O texto abaixo foi enviado para a seleção da Oficina de Jornalismo Literário da FLIP deste ano. Os próximos posts serão diretamente de lá.




Poucas pessoas têm a oportunidade de passar o dia com um poeta. Não um poeta de bar (me desculpem os amigos), tampouco poetas de publicações engavetadas, mas um poeta de verdade, com o pedigree da rima. Aquele que não se limita a palavras poéticas, mas que tem no andar, no respirar, o ser e o estar da poesia. Pois bem, eu, um mero jornalista de folhetim, sem raridades (quem sabe) e talvez com minha poesia engavetada, tive esta honra.

Para um maranhense de berço e carioca de vivência, deve ser realmente muito desencorajador lugares invernais. E esta foi a primeira colocação que Ferreira Gullar me fez quando nos encontramos na pousada da pequena cidade de Monteiro Lobato, na gelada Serra da Mantiqueira. O poeta estava lá, mãozinhas magras, se espremendo diante uma rala lareira para espantar o frio do início da manhã. Com toda educação e carinho ele me recebeu, junto com a linda produtora do “Viagem Literária”, que o levara para as esquecidas cidadelas desta serra para falar de poesia. Que coragem esta menina, eu pensei de cara. Imagina, levar Ferreira Gullar para esses confins de Deus para falar a um povo, que sabe-se lá, já ouviu falar dele algum dia. Mas isso parecia não importar a ele, o que realmente lhe preocupava era o frio, como ele iria sobreviver a tudo sem ficar gripado. Incrível, todos voltados para sua aura poética e ele, sem o menor pudor, pensando em colocar a ceroulas para reforçar na calefação pessoal.

A caravana seguiu para outra cidadezinha, que iria recebê-lo para uma palestra no início da noite. No carro, animado ele contava o recente episódio sobre o Prêmio Camões de Literatura. Estava no Sítio do Pica-Pau Amarelo quando recebeu o telefonema de um amigo lhe informando que havia sido premiado. “Fantástico”, dizia ele, “nunca pensei receber tal prêmio em lugar tão lúdico”. Isso só pode mesmo dar poesia. O Prêmio era o assunto de todos os jornais daquele dia. Para ele era um grande prazer, mas os assuntos do dia foram outros. O temor nas estradas brasileiras, os almoços dominicais com os amigos comunas, a farsesca ditadura no Brasil. Isso só pra começar o nosso papo.

Na pequena cidade uma comitiva nos esperava. Secretária de cultura, prefeito, poeta e artistas locais. Ele sempre sorridente, simpático, encantador, pra dizer a verdade. Sem pudores de estrela, soltou o verbo com a turma empolgada. Falou sobre política, sobre arte, sobre a briga com a mulher que resultou na frase célebre de caneca de lembrançinha: “Eu não quero ter razão, eu quero é ser feliz”. E ninguém conseguia passar incólume ao charme do poeta. Depois do almoço, por educação, a atenciosa produtora ofereceu um lugar para repousar, mas o interesse dele era conversar. Aquelas pessoas que saíram de suas casas, abandonaram seus trabalhos, fizeram o “day off” da poesia para ciceronear mereciam sua atenção, e ele não se esquivou disto. A sobremesa, o cafezinho, o passeio turístico pela cidade. Tudo lhe interessou e suas colocações não foram banais, só por educação. Disserto isso é poesia, eu pensei. Prestar atenção ao poeta-dentista ávido pelo seu olhar, o escultor que conta suas histórias na madeira, o bonequeiro da praça, que lhe prestou um poema em homenagem. Disserto isso dá poesia.

O cafezinho de final da tarde foi na casa dos artistas. Ateliês em meio a bosques verdes, cachorro, crianças. A arte não nasce na galeria. E dá-lhe pau na arte contemporânea. Nunca me senti tão à vontade ouvindo alguém falar sobre o que pensa sobre instalações de corpos. “Quando não se tem arte, se mostra a vida como ela é”. Um cafezinho atrás do outro e entramos nos exemplos pessoais. Aquela altura, a comitiva Ferreira Gullar já compartilhava de certa intimidade, e os assuntos fluíam como para amigos de escola. Só que foi neste momento, quando falou o homem é que percebi que estava em frente ao verdadeiro poeta. As dores só são verdadeiras quando são suas. E cantar as suas dores lhe revelou a verdadeira alma. Sem melancolia, sem tristeza, apenas compartilhou com aquele grupo estranho um pouco da vida. Talvez tenha sido um dos momentos mais sensíveis da vida daqueles que estavam ali. Um poeta falando sobre seus amores, suas dores, suas alegrias e pesares. Momento sem palavras para o resto que ouvia. Foi o amigo Gullar que “deveras humano”, como colocou o poeta local, nos presenteou sendo somente ele mesmo. O tocar na estrela.

À noite, o lugar da palestra estava lotado. Uma pequena biblioteca, com somente algumas edições dos principais autores brasileiros. Mesmo encantada com a cidade, mas cética por natureza, ainda pensei que o evento era por si só um evento. Alguma coisa que tirasse o povo de casa. Mas a recepção foi genuína e calorosa. Talvez nunca havia visto de fato, gente tão interessada em poesia. Gullar sentou-se no palco improvisado, no meio das estantes de livros, e depois de uma emocionada recepção musical, começou a falar. Da mesma forma como conversou com os amigos da tarde, conversou com aquela gente. Sem rodeios, sem eufemismos, sem colocações inúteis. Contou as histórias do Gato Gatinho, do neto que só desenhava animais em extinção, citou os amigos ilustres. Discutiu um pouco de política com um senhor que chamou Hugo Chávez e Che Guevara de “brucutu”. De certa forma, concordou com o amigo entusiasmado. Terminou sem rodeios, perdido no tempo e no calor daquela plateia que assim como eu, estava embebida em sua prosa tão poética.

A última pergunta foi de uma menina, preocupada em saber como é que se faz poesia. Como é que nasce a poesia Seu Ferreira? Sem solenidade, como quem fala de uma receita caseira ele disse: “O poeta é quem anuncia as notícias que não tem importância para ninguém. A flor que lhe assalta com tremendo perfume no meio da noite, a própria noite que nasceu no escuro... A poesia nasce do espanto.”

2 de agosto de 2010

Vento Negro destrói Porto Alegre!

No sábado à tarde, sentada num simpático boteco paulista na Agusta, comia picanha e falava sobre minha cidade natal com conterrâneos que estavam por essas bandas. Porto Alegre, a capital dos pampas, cidade que um dia quase foi modelo de qualidade de vida no Brasil.

Infelizmente as melhores coisas de Porto Alegre estão na lembrança. E não é porque eu estou à milhas de lá. É que um dia a cidade já fora limpa, um dia a cidade já fora amistosa, um dia a cidade já fora acolhedora. Hoje é um lugar abandonado, sujo, com canteiros porcos, carros entupindo as principais vias, uma cidade poluída, com parques abandonados, eca, um horror. As senhorinhas que ainda passeiam com seus cuscos na Redenção não cumprimentam mais, não param para falar da vida. Afinal, o parque virou tábua de tiro ao alvo. “Vai se confiar em quem minha filha?” As notícias são cada vez piores.

No centro, que outrora fora desenhado pela poesia de Quintana, hoje está o quadro da dor. Ruas escuras, a lá Álvares de Azevedo, lugares em decadência, olhos que espiam pelas janelas de prédios gradeados. É, a cidade não é mais a mesma. O bairro dos boêmios, fundado pela Baronesa do Gravataí, tradicional point de intelectuais da cidade, virou um caos noturno. Além dos bares bregas da moda, o engarrafamento, as crianças pedintes e os “pedreiros”, o bairro está um lixo. Foram-se as flores, foram-se as calçadas limpas, foi-se a paz. Se você não quer se divertir em Porto Alegre vá para a Cidade Baixa num sábado à noite.

Aí, algumas pessoas tentam se iludir dizendo que os investimentos estão nos lugares que mais precisam. Mentira da grossa. Duvido que alguém que diz isso já tenha pisado na Bom Jesus (que por sinal é uma dos maiores bolsões de miséria da América Latina), “Bonja” para os íntimos. Não há água encanada, não há esgoto, não há como entrar sem antes deixar deizão com o guri que fica na esquina segurando um cano (que sei lá Deus que calibre é). E para não ser tão extremista assim, vamos à Zona Norte, lugar que particularmente conheço bem, onde há mais de 50 anos atrás, era uma zona rural e onde meus avós compraram a casa da família. É apenas um bairro de periferia, todo mundo se conhece desde sempre. Mas agora não dá pra sair de casa depois das nove da noite. Pois o menino, filho da Dona Cissa, se meteu num rolo danado e a rua anda cercada por uns sujeitos estranhos. Pois é, antes o Liberato, colégio municipal do bairro, oferecia turno integral. Tinha banda marcial, tinha cancha de futebol, pista de corrida, almoço e lanche. Eu sei, estudei lá. Mas a prefeitura cortou a verba dos turnos extras, o filho da Dona Cissa começou a passar as tardes na esquina, de “aviãozinho”, mas se perdeu numa da entregas, sabe como é, agora ele tem uma dívida. E claro, o poder de compra aumentou, todo mundo tem carro na garagem (e prestação até a morte), e acham que a vida melhorou. Não seria a educação o que fariam as pessoas enxergarem melhor? Devo ser muito romântica mesmo.

É brabo! Mas é a verdade. Aos olhos de quem vive o mundo Zona Sul e Nilópolis (e olhe lá), a vida em Porto Alegre até pode ser divertida. Mas para o grande resto, e isso inclui moradores do Centro, Bom Fim, Cidade Baixa, Santana (e toda a classe média descendo a ladeira), a impressão que eu tenho é que a cidade está largada às moscas. Já tentei ver o que o “profe” Fogaça anda fazendo, mas tá difícil enxergar algo útil. Ah sim, ele fez uma estátua da Elis Regina, que Deus do Céu, se eu fosse a Maria Rita, mandaria processar. A verdade é que seu “Vento Negro” devastou a linda capital gaúcha, e ele que tanto cantou o amor pela cidade, não vê, só ele não vê.

30 de julho de 2010

Curta-metragem


Quando Guedes acordou já passava das oito da manhã. Ficou irritado, não gosta de perder o horário. Ele não precisa sair correndo pro trabalho, pois não tem escritório nenhum esperando seu ponto. Ele não precisa encaminhar ninguém pra escola, pois não tem filhos, tampouco dar o beijo de bom dia em sua esposa, pois não há esposa. Ele gosta mesmo é de levantar cedo, pegar o jornal na portaria do prédio e ler, antes de toda a cidade, as notícias do dia. Acende o primeiro “beckito” e toma um cafezinho. Preto, esperto, da hora. Assim, ele sente, todo dia, que começou com o pé direito. Depois desse ritualzinho do despertar, ele senta em frente ao computador, escolhe entre as pastas de MP3 a última faixa multitreck que baixou dos Beatles, e vai escrevendo e lendo blogs de amigos, até o meio dia, quando chega o almoço (que o menino da padaria vai entregar). Guedes faz qualquer coisa pra não ter que sair de casa por algum motivo que não o deixe completamente a fim de sair. Cineminha, chopp com os amigos, abertura de exposição vá lá, mas padaria, banco, mercadinho, médico, é demais pra ele.

A insônia de alguns dias vinha de uma ideia que andava rondando seus pensamentos. Passava boa parte da noite acordado pensando sobre o maldito caixa eletrônico. Desde que resolveu colocar seu dinheiro no banco, por conselho de amigos, não teve mais descanso. Cada dia que tentava fazer um saque do seu próprio dinheiro, a fila estava pior. E ele deixava pra depois, pra mais tarde. Até que passava das dez da noite e o caixa já estava fechado. 30 horas de quê? E desde que Soninha foi embora ele estava em maus lençóis. Ela era sua vizinha, já tinha o cartão e a senha, e passava pra ele no caixa todo dia, na volta do colégio. Deixava os vintão e pegava uma gorjetinha de cinco pro lanche do dia seguinte. O gerente um dia perguntou de quem era aquele cartão, Soninha não titubeou do alto dos seus 12 anos de idade. “É do meu avô. Ele é inválido”. Guedes morreu de rir quando ela contou, enquanto eles tomavam o tradicional lanchinho do fim de tarde, jogando banco imobiliário. Guedes dizia que ela tinha tino pra negócios e Soninha ficava feliz de morar em uma das ruas do jogo. Mas seus pais trocaram o quarto-e-sala da Paulista por um apartamento de dois quartos num condomínio fechado na Vila Angélica, onde havia um playground e crianças de sua idade. Ambos ficaram tristes demais para se despedir. Guedes e Soninha, uma grande dupla.

Os dias sem dinheiro se acumularam com a partida de Soninha. Guedes não tinha ânimo para enfrentar a fila, nem o gerente sentado na mesinha da frente, com o sorriso frisado para todos correntistas que adentrassem ao recinto. O fumo estava acabando e tinha uma ponte pra pegar uma lasquinha da remessa especial vinda de Ilha Bela. Precisava resolver logo e de uma vez por toda tudo isso. Ele não acumulava os problemas para não ter que resolvê-los. Não tinha emprego fixo, pra não ter problemas com horários. Não tinha namorada, pra não ter problemas com cobranças, não tinha empregada pra não ter problemas com a perda das cuecas entre as gavetas de meias. Passou então a alinhavar um plano que o faria se livrar para sempre do banco, do gerente, da fila pro caixa eletrônico.

Acordou tarde naquele dia e não tomou café em casa. Foi até o bar do Laertinho, seu grande parceiro, que herdou o negócio do pai, seu Laerte. Chamou o amigo num canto e negociou a parada. Laertinho usava o bar de fachada e Guedes sempre soube. Na hora exata, depois de muitos favores concedidos ao amigo, entre eles, emprestar o quartinho de empregada como depósito para mercadorias, Guedes cobrou a parceria. Laertinho coçou o queixo, balançou a cabeça com ares de mafioso e disse que o problema estava resolvido.

Naquela noite apareceu no apartamento de Guedes uma turma de malucos vindos do Vale da Guarda do Embaú. Amigos que Guedes não via há pelo menos 10 anos, mas que registraram sua apoteótica incursão ao mundo do cogumelo, quando em uma temporada no Vale, ele resolveu experimentar. A turma de sete cabeças se esparramou pela sala, pelos quartos, pelo banheiro. Trouxeram uma amostrinha especial de uma nova espécie de fungo que estava rolando. Prepararam numa mistura de vinho e canela, tudo fervendo numa panela com cravo da índia. Conversa vai, conversa vem e o bagulho começou a bater. Risaiada garantida por umas 5 horas sem parar ao som contínuo de “I am the walrus”. Guedes já havia perdido os cadernos e as comandas, quando lá pelas três da manhã ele abriu a porta e era Laertinho. Convidou o amigo para entrar, pra curtir o som e a turma, mas Laertinho estava tenso e anunciou que o negócio estava feito, só precisava de ajuda pra subir a parada.

Na frente do prédio àquela hora era mais tranqüilo. Poucos carros circulando, poucos transeuntes, mas mesmo assim o movimento tradicional da Avenida Paulista na cidade que nunca dorme. Eram nove homens contando Guedes e Laertinho. Cada um segurando de um lado, entre risos e desistências. “O que vocês tomaram cara?”, foi a pergunta de Laertinho, que recebeu um golfo de riso e bafo de vinho como resposta. Quando conseguiram entrar na portaria com o enorme carregamento, Seu Rivelino tentou ajudar a colocar no elevador, mas o negócio não entrou. Tiveram de subir sete andares. No meio do caminho, uma paradinha pra rir, pra fumar, pra descansar. Lá pelas quatro e quinze conseguiram entrar na sala de Guedes com o trambolho, que ficou bem na entrada. Para comemorar mais um cálice do sagrado vinho pra cada um e até mesmo Laertinho experimentou.

No dia seguinte, Guedes acordou com o sol no rosto, já passava das três da tarde. Foi direto pro banheiro e tomou um banho de banheira. Depois de minutos submerso até as orelhas, saiu da água, se secou, vestiu uma camisa branca e se barbeou. Quando foi pra sala não havia mais ninguém. Um bilhete com uma “puta consideração” pro amigo e mais uma dose na geladeira. Grande presença. Guedes olhou diretamente para a entrada e lá estava ele. Sem filas, sem gerente. O caixa eletrônico com todo seu dinheiro. Laertinho, cara esperto, já deixou aberto com um pé de cabra. Guedes se aproximou, teclou o número 19-69, ano em que os Beatles lançaram o Abbey Road. Com calma, abriu a portinhola onde estava a grana e viu apenas um bolo de notinhas empilhadas. Pegou vintão, colocou no bolso e ligou para o menino da padaria entregar o almoço.

28 de julho de 2010

Quero ser Isabella Swan.


Algumas pessoas – como eu - são alvos fáceis para um tipo determinado de entretenimento: os malditos filmes de saga. Amor e aventura, com uma moçinha descoordenada e um anti-herói de lábios macios e suculentos.

Desde a infância este tipo de sacanagem – literária ou cinematográfica- me pegou. Tudo começou com Poliana; aquela coleção tediosa: “Poliana Menina”, “Poliana Moça”, “Poliana Mulher”. Não era exatamente uma saga de aventuras, mas o leitor acompanhava seu crescimento, a saga natural de se tornar adulto. Eu queria ser tão leve e indulgente quanto ela, mas nunca consegui. Foi mais fácil quando entrei no mundo de Cristiane F., que também não foi propriamente uma saga, mas a história da menininha de 13 anos, prostituída e drogada continuava na minha cabeça, todo tempo, toda hora, até que minha identidade já se perdia nas longas madeixas vermelhas de Cristiane.

Um pouco mais velha, no início da adolescência, quando comecei a beber da fonte da intelectualidade – ou pensava beber- entrei naquela de Castanheda e Star Wars. Não sei por que, mas pra mim as duas coisas faziam muito sentido. Dom Juam e Mestre Ioda sempre falaram da mesma coisa: “o lado negro da força”. Isso fazia muito sentido. Mas era um segredo meu. O mundo das sagas, aliás, sempre foi um grande segredo da minha vida. Imagina, que eu, uma ex-Cristiane F. ia confessar que no fundo era igual aos nerds que adoravam o Luke Skywalker. Hoje isso é cult, mas no final dos 80 e início dos 90 não era não. Nesta época adolescente era uma coisa revoltada, mas não era punk; usava drogas, mas não era junk, nem tampouco hippie; era talvez um pouco de Kurt Cobain e sua depressão neo-roqueira.

Neste caminho de fissuração por um mundo completamente imaginário, criado por um autor doentio- que eu certamente admiro ou invejo- eu também me tornei (felizmente) refém dos quadrinhos. Entre todos os amores, os X-Mens estavam no topo da lista, porque eram humanos que simplesmente já nasciam especiais. O meu lance era principalmente com o Volverine. Quantas noites ele foi minha companhia, com suas garras angustiantes e seu jeito de lobo. Oh Meu Pai, eu amava aquele mutante. Jean Grey, aquela pateta, preferindo o Ciclope, todo jeito de moçinho, olhos perturbados. Nunca entendi. Eu dizia pra ela: “Vai lá mulher assume esse teu desejo! Volva é o cara”, mas nada, a cada edição ela estava mais tonta.

Os anos passaram, chegou a faculdade, um pouco de Watchmen na aula de antropologia mexia com minha pequena obsessão; mas por muito tempo me voltei mesmo para outros interesses. Teatro, Chico Buarque, Bergmann, cinema italiano, Kiorastami. Comecei a viver a minha própria saga. Foram alguns anos - um atrás do outro- de acontecimentos intensos. Amores, desamores, substâncias que me davam superpoderes, situações que me levaram a encontrar a minha própria força. E também minha autodestruição. Emoções loucas, decepções, a vida implacável batendo na porta e eu quase fui poro lado negro. E no meio desta tormenta dos maravilhosos vinte e poucos anos, Harry Potter me trouxe de volta para um mundo equilibrado, amistoso, fofo.

Quando conheci Hogwarts e Dumbledore comecei a me reencontrar novamente. Parece... não, não... não é clichê. Mas aqueles bruxinhos endiabrados me conectaram com o melhor da infância. Os meus esconderijos secretos, o mundo da imaginação que eu havia perdido. E cada história foi mais fantástica que a outra. Usei por muito tempo “A Ordem da Fênix” como meu filme de dormir. Naquelas noites de ressaca, me culpando pelo sábado anterior, Harry me salvou.

Hoje, uma mulher em desenvolvimento, com sentimentos bem dosados, com um lugar certo pra voltar a cada noite, eu novamente cai na esparrela de um mundo que não é meu. Quando começou o falatório sobre a saga vampiresca teenager Twilight, eu não dei bola alguma. Adoro vampiros, mas tenho muito medo também. Trinta anos, escapadelas de Rivotril - não arrisco mais a me provocar. Sofro de diegese, não posso ver filme de terror. Pois bem, há algum tempo atrás, navegando na internet numa noite de sábado qualquer, achei um link para assistir o filme Crepúsculo on line. Doule uma, doule duas... ah, por que não. Na hora dos vampiros, eu abaixo o volume. Comecei a assistir e a cada cena fui me surpreendendo. O pobre vampirinho Edward é um Romeu casto, e Bela pobre Swan, é uma Julieta tarada. Esse filme é de terror humano. Edward é completamente desejável, mas é um vampiro, seu beijo é de morte. Enquanto ele luta contra seu desejo de sangue, ela quer comê-lo inteirinho. Grande conflito.

E depois de despertada a sede, um sagaz devorador de sagas, quer mais. Assisti ao filme dois, não satisfeita, li o livro três e quatro. E agora, o filme três. Diversão garantida. Bella está muito mais tensa, no auge dos seus 18, 19 anos, ela ainda é virgem. Seu namorado é a cara do Elvis Presley (em seus melhores anos de Sun Sessions) e seu melhor-amigo-amante é um musculoso-cachorrão-muito-querido.

Pobre Bella Swan. É como uma heroína mítica, porque é capaz de camuflar sua coragem através de sua fragilidade. E assim como Helena de Tróia, acabar com a paz no reino dos seus seres míticos. Todos querem defender Isabella Swan. Todos morrem e matam por ela. Grande garota! Espero que a saga termine bem. O último livro é decepcionante. É claro que a autora cortou o que poderia ter sido sua melhor descrição: a noite de amor entre Bella e Ed. Já imaginava o puritanismo. Mas, a cena se passa em uma ilha brasileira perto do Rio de Janeiro chamada Esme. Esme? Alguém conhece? Não importa, Edward fala português e adora as espécies nativas. Já existe até propostas de mudaram o nome de Fernando de Noronha. Tudo é possível para fomentar a indústria cinematográfica brasileira. E os amantes de sagas estão por aí, de gabinetes a candy shops, sempre há um deles camuflando sua paixão por alguma história alheia. Ué, Quem sabe?

27 de julho de 2010

Poemetes



Me sinto tão sozinha.
Essa frase de sentir - me repito uma vez por mês, com certeza.
E depois rio de mim.
Flagrando esse jeito autopiedoso de ser.
...

Fico como uma flor murcha quando estou em recintos que inibam minha pessoa de ser.
Fico como quem se sufoca, quando me policio para conter as “extroverções” da minha pessoa de ser.
Aquelas - principalmente de soltar uma boa gaitada de galpão.
Do nada,
Por nada,
Mas que fazem com que a gente se sinta a sua própria pessoa de ser.
...

Ai! Detesto-me sendo pessoa de rima.
Tão fraca, coitadinha.
Igual as perninhas que andam a se quebrar.
De tanto bater um joelho ossudo no outro.
Igualzinha a fraqueza do corpo.
Fraca de rima.
Fraca de perna.
Daquelas que falam bambeando e não conseguem ser firmes em passos curtos.
As rimas.
As pernas.

26 de julho de 2010

Os sonhos de Lolitos

Benvinda é minha vizinha. Ela mora no andar de cima. Todo dia, lá pelas onze da manhã, vem do seu apartamento um cheirinho de feijão com laranja. Assim que o feijão começa a ferver e infesta toda a casa com o cheiro de toucinho defumado, ela, sem piedade, corta os gominhos, misturando aquela acidez cítrica no ar. Não é por nada não, mas sempre que me lembro de Dona Benvinda, vem o cheirinho de feijão.

Nunca entrei em sua casa, mas imagino perfeitamente como seja. Móveis velhos conservados, almofadas estampadas com cara de leão e onça pintada. Bibelôs de porcelana na cristaleira. Cortinas pesadas de cetim, compradas em algum tempo de vida boa. Guardanapinhos em tudo. Amarelados, sem goma. O quarto de Benvinda, um mausoléu, com lembranças de um tempo em que havia um marido pra compartilhar, se é que houve um marido um dia.

Na verdade, Benvinda é muito mais pra solteirona. Não daquelas que tem gato e se empanturram na frente da TV. Ela é asseada demais pra animais. Corpo magro, quase sem bunda e sem peito. Cabelos curtos, bem alinhados, olhos e sobrancelhas com maquiagem permanentes. Roupa cheirando a amaciante e na nuca, pertinho da gola, cheiro de colônia refrescante de hortelã. Ela é uma falsa puritana. Depois que se aposentou do tribunal de contas, onde por 42 anos foi técnica de contabilidade, ela comprou uma tevê 48 polegadas e mandou instalar o cabo com todos os canais liberados. Nesse regozijo do zapear, ela se deparou com o mundo dos pornôs. Dos mais variados. Depois da novela das nove, se não estiver passando nem um filminho, ela vai direto para “Os sonhos de Lolitos”. Benvinda pirou quando descobriu esse tipo de entretenimento. Os corpos masculinos, nus, num esfrega e esfrega, barba com barba, começou a despertar partes adormecidas em seu próprio corpo. Ela se vidra no ritmo, no vocabulário. Posso jurar que um dia ela se empolgou e levantou o volume, bem na hora que um dos Lolitos gritou: “mete tudo bem gostoso”. O negócio dela é “just for man”, descobriu que havia uma Mona escondia naquele corpo velho e magro. Depois disso, a vida ficou mais amena. Ela até compraria um bustiê de couro, daqueles que deixam os biquinhos do seio de fora, se não fosse a polidez de entrar numa sex shop. Mas tudo bem, mesmo assim ela tem se divertido. Isso é bom para ela.

É, Benvinda, é a minha vizinha do andar de cima. Seu feijão deve ser muito bom. Ela nunca me cumprimentou no corredor, sequer um bom dia. Sei que ela é no fundo, no fundo, tímida. Tem medo da rejeição, ou que eu peça algo emprestado. Não culpo Benvinda, foram anos de crochê, bordado, receitas de pão. E para quê? Para quem? O tempo passou pra ela. Alguns acreditam que o tempo é relativo, mas pra Benvinda não é não. Já não há mais volta. Seu corte de cabelo, o vinco de ruga na testa. Não há mais tempo pra mudanças.

Please, me dê um cigarro, que eu quero descer.


"Você não passa de uma tentativa". Ele disse. Não é mais do que uma tentativa fraca e preguiçosa. Ele me fuzilou com o olhar. E eu sei que foi isso que ele teria dito. "Nossa, cara, pra quê tudo isso!" Foi o que eu pensei. Mas também não disse. Eu não disse nada, nem ele.

Muito bem, mais um dia péssimo que passou. Céu perfeito, daqueles que atingem todos os níveis de coloração. Do azul marca d'água, para uma coisa tipo firmamento e no fim da tarde as cores esmiuçando-se entre as nuvens... e um vapor laranja. Mas tudo deu errado, tudo foi mal entendido. Não houve uma palavra sequer posta com convicção.
Ele não estava bem há semanas. Me convidava para jantar e deixava os garfos postos ao lado do prato. Quando a comida estava quase fria, ele comia. Que deprê, que busca pela deprê. Tem vezes que a gente faz tudo ao redor pra ficar ainda mais deprê. Chega em casa e fecha a persiana. Sintomático, a gente nem percebe, é só um estado de espírito. Mas ele estava assim, se cercando de um delírio amargo que só. E só. Se fechando num mundinho pequeno príncipe altista.
Eu estava notando, se não... Tudo que eu falava era uma agonia para os seus ouvidos. "Leveza é coisa de viado e modelo de passarela beibe". E sabe.... quando a gente tenta ser feliz? Agradável. Lê I-cing, toma chá de camomila no final do dia, acende incenso, fuma um antes de dormir. Nada, nada. Nenhuma manifestação, a não ser seu incrível desprezo pela humanidade.

Um dia terrível acontece. Já advertida pelo seu mau-humor, pisava em ovos.

Só que não dá pra ser sempre um oásis de tranquilidade. Tem horas que dá pra lembrar que ainda se tá dentro dos 20 e poucos anos de idade (quando se está) e soltar uma merda qualquer. E azar do goleiro. Azar de quem não merece a companhia de um oásis rock and roll.

Pois é, ele me odiou, quebrei seu pacto de infelicidade e lembrei que o rock estava vivo. Nossa! o rock está vivo, tudo é uma ilusão falsa e imunda e viva o bagaçerismo e a alegria demodê. "Domingo de manhã, sai pra caçar rã e quando de repente apareceu a tua irmã. Que sarro". Vou sair de preto e rosa e vou usar sapatos envernizados e ir pela noite, uhu. Vou sim amor, vou chegar amanhã cansada e com olheiras e vou descambar pro lado da ressaca - prova dolorosa de que se pode ser feliz numa noite apenas.

Meu discurso retumbou em seus ouvidos, mesmo eu não tendo dito palavra alguma. A única coisa que fiz foi ter tirado um batom da bolsa, depois ter acendido um cigarro e ter me deliciado com uma tragada. O filtro com marca de boca no cinzeiro. Foi demais pra ele. Eu sou uma tentativa.

23 de julho de 2010

Afrismos vagabundos


Coisas vagas I

"Não tenho nada contra bares de rodoviária. Na grande maioria, impessoais e grosseiros. Atendentes mal humorados e clientes ansiosos pela partida. Não tenho nada contra lugares fétidos em geral. Aqueles do tipo, que se chega, se fuma um cigarro, no máximo uma cerveja e, se vai embora."

...

Série I ching

"Uma mulher quando ama com toda sua alma e corpo, não precisa de advertências. Ela é firme e correta. Um homem quando ama com toda sua alma e corpo, é forte, porém, cede as tentações. Ele é firme e correto em corrigir seus atos.""

...

Coisas vagas II

"Quando duas pessoas estão apaixonadas, não conseguem ver o mundo ao redor. Quando duas pessoas se amam, precisam que o mundo ao redor as veja."

"O perdão nunca surge instantaneamente da alma. Ele traz junto de si, segundos ininterruptos de raiva."

"Aprender a viver é um instinto que já vem embutido nos primeiros germes de vida."

"A felicidade é uma recompensa por não desistir."

"É bom dividir os momentos de silêncio. Neles, se configuram as sensações mais plenas de tranqüilidade do espírito. Devemos ouvir o silêncio como quem aprecia um bom chá."

...

Série cotidiano e culinária

"Está na hora de ler sobre chás, ervas e botânica. De saber mais sobre temperos e arquitetura. Saber gozar em frente a uma tela expressionista e encontrar sentido em mastigar verduras com lemom grass e gengibre..."

"O vital daqui uns tempos será mesclar o prazer sexual com hábitos cotidianos. Mas também não há a necessidade de enfiar uma cenoura entre as pernas! Basta degustá-la com o molho apropriado."

"Chá de hibisco - naturalmente antidepressivo. Estimula as papilas e as pupilas."

"Cada porção do braço liso e branco era como pedacinhos de rocambole de côco. Deslizava minha língua roubando a cobertura."

...

Coisas vagas III

"Hoje me derramo orvalho entre as pernas. Acordei fazendo biquinho nos lábios e nos seios."

"Cercar-se de bons amigos é quase uma estratégia de sobrevivência."

"Ah, como é bom saber que ainda estão vivos alguns dos meus ídolos. Me faz sentir uma certa... esperança."

"Evite machucar quem se ama. Nem sempre a regra três pode ser colocada em prática. O presente não pode ser vivido mais de uma vez, se não, já não é presente. Torna-se um suspiro lamentoso do passado ou uma lembrança “agônica” do futuro."

"A frustração nasce de um desejo interrompido."

"Às vezes, um vale de decepção separa um sonho da realidade."

"Quem se dá mais do que pode, fica raso."

22 de julho de 2010

A prece do desassossego

Nos últimos dias ela andava completamente atordoada. Não sabia se eram as marteladas da reforma no escritório, ou a menopausa precoce. Um calor, uma vontade de gritar. Um frio, queria bater a porta e chorar escondida.

Chegava em casa e jogava a bolsa no sofá – era como se saísse poeira dos pés. Ia direto ao banheiro. Não mijava, não lavava o rosto, se olhava no espelho. Ficava observando as olheiras, a expressão cansada, a pele gordurenta. Seu nome, Francisca. A mulher que não planejava nada. Que sentava em cima das pernas e ficava por horas observando a parede verde do seu quarto. Não queria namorar porque suava. Não queria dormir porque doía a cabeça. Não queria estar onde estava, mas não queria mover a bunda pra nenhum lugar.

- Ah Francisca! Suspirava pra si mesma, tocava-lhe o rosto através do espelho e lhe fazia um miminho na bochecha. O coração apertado, o pulmão cheio de nicotina e uma desventura que guardava na imaginação. – Sim, é muito difícil Francisca. A vida é assim mesmo, meu anjo. Depois que se cresce não tem volta. Se dar conta que a vida não tem volta. Saber é um passo lento para a morte.

A aflição desta mulherzinha não era algo palpável. A vida lhe era boa, colorida e estável. Os amigos presentes, as pernas encelulitadas de comida - nunca fora tanta fartura. Mas é que ela sentia isso, de vez em vez, ou quase sempre - na verdade. Não conseguia desligar-se da mania de entender o que se passava ao seu redor o tempo todo. A menos, quando enchia a cara. Então não, Francisca, ficava leve, frouxa. Quando encontrava Mariano – depois de umas (cervejas, vodka com laranja), ela era todo amores. Sem falação barata, sem “ai que dia hoje não?”, era vem pra cá meu benzinho e vapiti vupiti. Mariano já estava morto no chão. E assim eram os dias de Francisca. Rainha da compreensão humana. - Oh Francisca, vê se te manca e vai apenas viver a vida, molhar as flores e inventar algo mais bem humorado pra dizer na janta!

Um amigo aparecia lá pelas tantas. Era dor de cotovelo. Paixão louca. Ela ouvia como uma mestra do entendimento humano que era. Dizia que a vida é assim mesmo. – O que não tem remédio, remediado está. Te acumóda homi! O amigo se embebia de coisas que estava querendo escutar. A grande sacada de Francisca era dizer o que as pessoas gostavam de ouvir. Poderia ser vendedora, mas não lidava bem com números. Confortava-se em confortar. O amigo ia embora, deixava uma ponta, e Francisca voltava a sentir todo o desassossego do mundo dentro do seu quarto. As horas passavam rápidas demais, derramava café na cozinha, arrumava tudo e derramava de novo. Atordoada que estava. Fumava a ponta enquanto Mariano não aparecia.

Francisca não queria mais torrar o saco de ninguém com suas coisas. Nada tinha pra acontecer efetivamente, só uma noite qualquer. Francisca então colocava amaciante na carne, fazia suco de hortelã e talvez, quem sabe, conseguisse chegar mais perto de ser o que tanto queria – um lago sereno no meio de um bosque de árvores frondosas. Amava palavras doces como estas. A palavra mais linda da língua portuguesa – desassossego. Uma prece para o desassossego ir embora e deixar Francisca no seu bosque, com Mariano, com sua celulite, com seus conselhos inúteis. Era quase dez da noite, o barulho de chaves na porta. A janta na mesa, a calcinha nova e um ruge nas maçãs do rosto. No fundo, os olhos lacrimosos, a alma melancólica. Mas Francisca havia decidido – bem no momento em que cortou o alho - chega de lamúrias. É tempo de viver e apenas viver.

Mariano já sabia, era o dia da transformação da semana. Ele adorava esse dia - um por semana, toda a semana, igualzinho todo o mês. Já notava pelos ares, pela música, pelos olhos inchados disfarçados de corretivo, do arzinho de normal por trás dos ombros tensos. Mas ele pensava “Ah Francisquinha, vale a tentativa! Te amo todos os dias, e nesse dia especialmente, quando queres ser outra pessoa, renegando tudo que és. Te amo minha desassossegada mulher.” Comia tudo e depois comentava o tempero- igual toda semana- mas ela nem desconfiava, pois era o seu novo dia, sua decisão de amar mais a Mariano e ser um lago sereno no meio de um bosque de árvores frondosas.

Jornada dupla: a mulher com peitos de melões em meio a sacas de arroz.

Noite dura essa, viu! Acordei no espanto, não sei se era porque sonhava com aranhas, ou o Xico Sá me beijando no vagão de um trem de cargas. Nossa, noite dura mesmo!

Quando tenho esses sonhos malucos, uma sequência de acontecimentos infames, como meu filme surreal particular, geralmente acordo tomada de preguiça e tédio. O dia não realiza, sabe. As tarefas são executadas dentro das suas urgências, o tempo é cumprido tal qual se propunha, mas eu não existo nesse dia. Como disse uma poeta minha amiga, “deixo a alma no cabide”.

Essa relação com sonhos é algo bem constante pra mim. Desde pequena, essa sobrevida noturna sempre foi presente, causando até mesmo esse cansaço. As aventuras vividas nessa dimensão transportam para o corpo físico a sensação, embora às vezes a lembrança fique embaralhada. Teve uma vez que eu sonhava que me agachava pra mijar atrás de um arbusto. Forçava, forçava, e nada, não vinha o xixi. Até que olhei pra mim mesma, como se meus olhos fossem um espelho voltado pra dentro e disse: Acorde, você está dormindo! E acordei. Só que acordei em outro sonho, onde tudo era igualzinho a realidade. Estava deitada em minha cama, no meu quarto, já era de manhã. Levantei, fui até o banheiro, baixei as calçinhas e mijei. E depois de ter me aliviado, tomei banho, sai pro trabalho. Peguei o ônibus, cheguei no escritório, trabalhei até o meio dia, quando finalmente olhei para o relógio do computador e a tela havia desaparecido. Dei um salto, e no susto do sonho, acordei de verdade. E o mais engraçado (e óbvio), já era meio-dia e eu estava muito atrasada.

Nunca fiz terapia junguiana pra saber qual a conexão disso tudo. Acredito que esses escapes tem a ver com a vontade de certo modo, dar uma fugidinha mesmo. Uma escapadela da vida real. Sair da rotina, propor, causar. Essa noite, por exemplo, tudo começou quando encontrava um amigo que me pedia pra ajudá-lo a recuperar suas roupas na casa da ex-mulher. Cheguei na casa, e quando entrei, estava tomada de aranhas. Eram caranguejeiras peludas, que estavam no teto, no chão, nas paredes. Sai de dentro da casa para dizer pra ele que já era hora mesmo de se separar. Mas não havia mais amigo, não havia mais casa. De repente eu estava numa estrada com uma mala enorme pedindo carona. Nenhum carro parava, até que vi um trem numa estação. Corri até lá e embarquei clandestinamente em um vagão cheio de sacas de arroz. Escondi minha mala em baixo das sacas e me deitei rente ao chão, para que ninguém me visse. E eis que surge, nesse momento caótico, o cronista Xico Sá. Olhei pra ele com certo receio e perguntei se eu poderia ficar ali. Ele me disse sorrindo, que era tão clandestino quanto eu, e para ficar tranqüila, que logo chegaríamos na última estação. Fiquei pensando na minha cabeça de sonho, “o que esse homem está fazendo aqui, meu Deus?” Ele sorria e, atrás dos seus óculos fundo-de-garrafa, seus pequenos olhos maliciosos, me cobiçavam. Sim, porque chegou aquele momento indecente dos sonhos, onde percebemos que estamos nus. E além disso, o pior, meus seios pareciam dois melões assassinos. Estavam enormes, duros, inchados. Fechei os olhos (no sonho) e fingi que dormia. Ele não teve dúvidas. Me roubou um beijo. Dois, três, beijo de língua mesmo. Quando senti que seu corpo se avançava sobre o meu, esmagando meus peitões de sonho, acordei. Ufa!!! Transar com um desconhecido é coisa que pode acontecer com qualquer um. Mas já que era sonho (não desmerecendo o cronista), bem que poderia ser quem sabe... o Javier Barden.

Quando acordei hoje, já era tarde, a cabeça estava pesada, o corpo dolorido. Talvez tenha sido o reflexo de dormir nua, com um homem sobre mim, esmagada entre sacas de arroz, num trem em movimento. Me arrastei o dia todo, sem motivo aparente. Meu marido me perguntou porque eu estava desse jeito. Eu balancei a cabeça e disse apenas: noite difícil essa, só isso.