30 de julho de 2010

Curta-metragem


Quando Guedes acordou já passava das oito da manhã. Ficou irritado, não gosta de perder o horário. Ele não precisa sair correndo pro trabalho, pois não tem escritório nenhum esperando seu ponto. Ele não precisa encaminhar ninguém pra escola, pois não tem filhos, tampouco dar o beijo de bom dia em sua esposa, pois não há esposa. Ele gosta mesmo é de levantar cedo, pegar o jornal na portaria do prédio e ler, antes de toda a cidade, as notícias do dia. Acende o primeiro “beckito” e toma um cafezinho. Preto, esperto, da hora. Assim, ele sente, todo dia, que começou com o pé direito. Depois desse ritualzinho do despertar, ele senta em frente ao computador, escolhe entre as pastas de MP3 a última faixa multitreck que baixou dos Beatles, e vai escrevendo e lendo blogs de amigos, até o meio dia, quando chega o almoço (que o menino da padaria vai entregar). Guedes faz qualquer coisa pra não ter que sair de casa por algum motivo que não o deixe completamente a fim de sair. Cineminha, chopp com os amigos, abertura de exposição vá lá, mas padaria, banco, mercadinho, médico, é demais pra ele.

A insônia de alguns dias vinha de uma ideia que andava rondando seus pensamentos. Passava boa parte da noite acordado pensando sobre o maldito caixa eletrônico. Desde que resolveu colocar seu dinheiro no banco, por conselho de amigos, não teve mais descanso. Cada dia que tentava fazer um saque do seu próprio dinheiro, a fila estava pior. E ele deixava pra depois, pra mais tarde. Até que passava das dez da noite e o caixa já estava fechado. 30 horas de quê? E desde que Soninha foi embora ele estava em maus lençóis. Ela era sua vizinha, já tinha o cartão e a senha, e passava pra ele no caixa todo dia, na volta do colégio. Deixava os vintão e pegava uma gorjetinha de cinco pro lanche do dia seguinte. O gerente um dia perguntou de quem era aquele cartão, Soninha não titubeou do alto dos seus 12 anos de idade. “É do meu avô. Ele é inválido”. Guedes morreu de rir quando ela contou, enquanto eles tomavam o tradicional lanchinho do fim de tarde, jogando banco imobiliário. Guedes dizia que ela tinha tino pra negócios e Soninha ficava feliz de morar em uma das ruas do jogo. Mas seus pais trocaram o quarto-e-sala da Paulista por um apartamento de dois quartos num condomínio fechado na Vila Angélica, onde havia um playground e crianças de sua idade. Ambos ficaram tristes demais para se despedir. Guedes e Soninha, uma grande dupla.

Os dias sem dinheiro se acumularam com a partida de Soninha. Guedes não tinha ânimo para enfrentar a fila, nem o gerente sentado na mesinha da frente, com o sorriso frisado para todos correntistas que adentrassem ao recinto. O fumo estava acabando e tinha uma ponte pra pegar uma lasquinha da remessa especial vinda de Ilha Bela. Precisava resolver logo e de uma vez por toda tudo isso. Ele não acumulava os problemas para não ter que resolvê-los. Não tinha emprego fixo, pra não ter problemas com horários. Não tinha namorada, pra não ter problemas com cobranças, não tinha empregada pra não ter problemas com a perda das cuecas entre as gavetas de meias. Passou então a alinhavar um plano que o faria se livrar para sempre do banco, do gerente, da fila pro caixa eletrônico.

Acordou tarde naquele dia e não tomou café em casa. Foi até o bar do Laertinho, seu grande parceiro, que herdou o negócio do pai, seu Laerte. Chamou o amigo num canto e negociou a parada. Laertinho usava o bar de fachada e Guedes sempre soube. Na hora exata, depois de muitos favores concedidos ao amigo, entre eles, emprestar o quartinho de empregada como depósito para mercadorias, Guedes cobrou a parceria. Laertinho coçou o queixo, balançou a cabeça com ares de mafioso e disse que o problema estava resolvido.

Naquela noite apareceu no apartamento de Guedes uma turma de malucos vindos do Vale da Guarda do Embaú. Amigos que Guedes não via há pelo menos 10 anos, mas que registraram sua apoteótica incursão ao mundo do cogumelo, quando em uma temporada no Vale, ele resolveu experimentar. A turma de sete cabeças se esparramou pela sala, pelos quartos, pelo banheiro. Trouxeram uma amostrinha especial de uma nova espécie de fungo que estava rolando. Prepararam numa mistura de vinho e canela, tudo fervendo numa panela com cravo da índia. Conversa vai, conversa vem e o bagulho começou a bater. Risaiada garantida por umas 5 horas sem parar ao som contínuo de “I am the walrus”. Guedes já havia perdido os cadernos e as comandas, quando lá pelas três da manhã ele abriu a porta e era Laertinho. Convidou o amigo para entrar, pra curtir o som e a turma, mas Laertinho estava tenso e anunciou que o negócio estava feito, só precisava de ajuda pra subir a parada.

Na frente do prédio àquela hora era mais tranqüilo. Poucos carros circulando, poucos transeuntes, mas mesmo assim o movimento tradicional da Avenida Paulista na cidade que nunca dorme. Eram nove homens contando Guedes e Laertinho. Cada um segurando de um lado, entre risos e desistências. “O que vocês tomaram cara?”, foi a pergunta de Laertinho, que recebeu um golfo de riso e bafo de vinho como resposta. Quando conseguiram entrar na portaria com o enorme carregamento, Seu Rivelino tentou ajudar a colocar no elevador, mas o negócio não entrou. Tiveram de subir sete andares. No meio do caminho, uma paradinha pra rir, pra fumar, pra descansar. Lá pelas quatro e quinze conseguiram entrar na sala de Guedes com o trambolho, que ficou bem na entrada. Para comemorar mais um cálice do sagrado vinho pra cada um e até mesmo Laertinho experimentou.

No dia seguinte, Guedes acordou com o sol no rosto, já passava das três da tarde. Foi direto pro banheiro e tomou um banho de banheira. Depois de minutos submerso até as orelhas, saiu da água, se secou, vestiu uma camisa branca e se barbeou. Quando foi pra sala não havia mais ninguém. Um bilhete com uma “puta consideração” pro amigo e mais uma dose na geladeira. Grande presença. Guedes olhou diretamente para a entrada e lá estava ele. Sem filas, sem gerente. O caixa eletrônico com todo seu dinheiro. Laertinho, cara esperto, já deixou aberto com um pé de cabra. Guedes se aproximou, teclou o número 19-69, ano em que os Beatles lançaram o Abbey Road. Com calma, abriu a portinhola onde estava a grana e viu apenas um bolo de notinhas empilhadas. Pegou vintão, colocou no bolso e ligou para o menino da padaria entregar o almoço.