22 de julho de 2010

A prece do desassossego

Nos últimos dias ela andava completamente atordoada. Não sabia se eram as marteladas da reforma no escritório, ou a menopausa precoce. Um calor, uma vontade de gritar. Um frio, queria bater a porta e chorar escondida.

Chegava em casa e jogava a bolsa no sofá – era como se saísse poeira dos pés. Ia direto ao banheiro. Não mijava, não lavava o rosto, se olhava no espelho. Ficava observando as olheiras, a expressão cansada, a pele gordurenta. Seu nome, Francisca. A mulher que não planejava nada. Que sentava em cima das pernas e ficava por horas observando a parede verde do seu quarto. Não queria namorar porque suava. Não queria dormir porque doía a cabeça. Não queria estar onde estava, mas não queria mover a bunda pra nenhum lugar.

- Ah Francisca! Suspirava pra si mesma, tocava-lhe o rosto através do espelho e lhe fazia um miminho na bochecha. O coração apertado, o pulmão cheio de nicotina e uma desventura que guardava na imaginação. – Sim, é muito difícil Francisca. A vida é assim mesmo, meu anjo. Depois que se cresce não tem volta. Se dar conta que a vida não tem volta. Saber é um passo lento para a morte.

A aflição desta mulherzinha não era algo palpável. A vida lhe era boa, colorida e estável. Os amigos presentes, as pernas encelulitadas de comida - nunca fora tanta fartura. Mas é que ela sentia isso, de vez em vez, ou quase sempre - na verdade. Não conseguia desligar-se da mania de entender o que se passava ao seu redor o tempo todo. A menos, quando enchia a cara. Então não, Francisca, ficava leve, frouxa. Quando encontrava Mariano – depois de umas (cervejas, vodka com laranja), ela era todo amores. Sem falação barata, sem “ai que dia hoje não?”, era vem pra cá meu benzinho e vapiti vupiti. Mariano já estava morto no chão. E assim eram os dias de Francisca. Rainha da compreensão humana. - Oh Francisca, vê se te manca e vai apenas viver a vida, molhar as flores e inventar algo mais bem humorado pra dizer na janta!

Um amigo aparecia lá pelas tantas. Era dor de cotovelo. Paixão louca. Ela ouvia como uma mestra do entendimento humano que era. Dizia que a vida é assim mesmo. – O que não tem remédio, remediado está. Te acumóda homi! O amigo se embebia de coisas que estava querendo escutar. A grande sacada de Francisca era dizer o que as pessoas gostavam de ouvir. Poderia ser vendedora, mas não lidava bem com números. Confortava-se em confortar. O amigo ia embora, deixava uma ponta, e Francisca voltava a sentir todo o desassossego do mundo dentro do seu quarto. As horas passavam rápidas demais, derramava café na cozinha, arrumava tudo e derramava de novo. Atordoada que estava. Fumava a ponta enquanto Mariano não aparecia.

Francisca não queria mais torrar o saco de ninguém com suas coisas. Nada tinha pra acontecer efetivamente, só uma noite qualquer. Francisca então colocava amaciante na carne, fazia suco de hortelã e talvez, quem sabe, conseguisse chegar mais perto de ser o que tanto queria – um lago sereno no meio de um bosque de árvores frondosas. Amava palavras doces como estas. A palavra mais linda da língua portuguesa – desassossego. Uma prece para o desassossego ir embora e deixar Francisca no seu bosque, com Mariano, com sua celulite, com seus conselhos inúteis. Era quase dez da noite, o barulho de chaves na porta. A janta na mesa, a calcinha nova e um ruge nas maçãs do rosto. No fundo, os olhos lacrimosos, a alma melancólica. Mas Francisca havia decidido – bem no momento em que cortou o alho - chega de lamúrias. É tempo de viver e apenas viver.

Mariano já sabia, era o dia da transformação da semana. Ele adorava esse dia - um por semana, toda a semana, igualzinho todo o mês. Já notava pelos ares, pela música, pelos olhos inchados disfarçados de corretivo, do arzinho de normal por trás dos ombros tensos. Mas ele pensava “Ah Francisquinha, vale a tentativa! Te amo todos os dias, e nesse dia especialmente, quando queres ser outra pessoa, renegando tudo que és. Te amo minha desassossegada mulher.” Comia tudo e depois comentava o tempero- igual toda semana- mas ela nem desconfiava, pois era o seu novo dia, sua decisão de amar mais a Mariano e ser um lago sereno no meio de um bosque de árvores frondosas.