26 de julho de 2010

Os sonhos de Lolitos

Benvinda é minha vizinha. Ela mora no andar de cima. Todo dia, lá pelas onze da manhã, vem do seu apartamento um cheirinho de feijão com laranja. Assim que o feijão começa a ferver e infesta toda a casa com o cheiro de toucinho defumado, ela, sem piedade, corta os gominhos, misturando aquela acidez cítrica no ar. Não é por nada não, mas sempre que me lembro de Dona Benvinda, vem o cheirinho de feijão.

Nunca entrei em sua casa, mas imagino perfeitamente como seja. Móveis velhos conservados, almofadas estampadas com cara de leão e onça pintada. Bibelôs de porcelana na cristaleira. Cortinas pesadas de cetim, compradas em algum tempo de vida boa. Guardanapinhos em tudo. Amarelados, sem goma. O quarto de Benvinda, um mausoléu, com lembranças de um tempo em que havia um marido pra compartilhar, se é que houve um marido um dia.

Na verdade, Benvinda é muito mais pra solteirona. Não daquelas que tem gato e se empanturram na frente da TV. Ela é asseada demais pra animais. Corpo magro, quase sem bunda e sem peito. Cabelos curtos, bem alinhados, olhos e sobrancelhas com maquiagem permanentes. Roupa cheirando a amaciante e na nuca, pertinho da gola, cheiro de colônia refrescante de hortelã. Ela é uma falsa puritana. Depois que se aposentou do tribunal de contas, onde por 42 anos foi técnica de contabilidade, ela comprou uma tevê 48 polegadas e mandou instalar o cabo com todos os canais liberados. Nesse regozijo do zapear, ela se deparou com o mundo dos pornôs. Dos mais variados. Depois da novela das nove, se não estiver passando nem um filminho, ela vai direto para “Os sonhos de Lolitos”. Benvinda pirou quando descobriu esse tipo de entretenimento. Os corpos masculinos, nus, num esfrega e esfrega, barba com barba, começou a despertar partes adormecidas em seu próprio corpo. Ela se vidra no ritmo, no vocabulário. Posso jurar que um dia ela se empolgou e levantou o volume, bem na hora que um dos Lolitos gritou: “mete tudo bem gostoso”. O negócio dela é “just for man”, descobriu que havia uma Mona escondia naquele corpo velho e magro. Depois disso, a vida ficou mais amena. Ela até compraria um bustiê de couro, daqueles que deixam os biquinhos do seio de fora, se não fosse a polidez de entrar numa sex shop. Mas tudo bem, mesmo assim ela tem se divertido. Isso é bom para ela.

É, Benvinda, é a minha vizinha do andar de cima. Seu feijão deve ser muito bom. Ela nunca me cumprimentou no corredor, sequer um bom dia. Sei que ela é no fundo, no fundo, tímida. Tem medo da rejeição, ou que eu peça algo emprestado. Não culpo Benvinda, foram anos de crochê, bordado, receitas de pão. E para quê? Para quem? O tempo passou pra ela. Alguns acreditam que o tempo é relativo, mas pra Benvinda não é não. Já não há mais volta. Seu corte de cabelo, o vinco de ruga na testa. Não há mais tempo pra mudanças.