3 de agosto de 2010

A poesia nasce do espanto.

Falando em Parati...
O texto abaixo foi enviado para a seleção da Oficina de Jornalismo Literário da FLIP deste ano. Os próximos posts serão diretamente de lá.




Poucas pessoas têm a oportunidade de passar o dia com um poeta. Não um poeta de bar (me desculpem os amigos), tampouco poetas de publicações engavetadas, mas um poeta de verdade, com o pedigree da rima. Aquele que não se limita a palavras poéticas, mas que tem no andar, no respirar, o ser e o estar da poesia. Pois bem, eu, um mero jornalista de folhetim, sem raridades (quem sabe) e talvez com minha poesia engavetada, tive esta honra.

Para um maranhense de berço e carioca de vivência, deve ser realmente muito desencorajador lugares invernais. E esta foi a primeira colocação que Ferreira Gullar me fez quando nos encontramos na pousada da pequena cidade de Monteiro Lobato, na gelada Serra da Mantiqueira. O poeta estava lá, mãozinhas magras, se espremendo diante uma rala lareira para espantar o frio do início da manhã. Com toda educação e carinho ele me recebeu, junto com a linda produtora do “Viagem Literária”, que o levara para as esquecidas cidadelas desta serra para falar de poesia. Que coragem esta menina, eu pensei de cara. Imagina, levar Ferreira Gullar para esses confins de Deus para falar a um povo, que sabe-se lá, já ouviu falar dele algum dia. Mas isso parecia não importar a ele, o que realmente lhe preocupava era o frio, como ele iria sobreviver a tudo sem ficar gripado. Incrível, todos voltados para sua aura poética e ele, sem o menor pudor, pensando em colocar a ceroulas para reforçar na calefação pessoal.

A caravana seguiu para outra cidadezinha, que iria recebê-lo para uma palestra no início da noite. No carro, animado ele contava o recente episódio sobre o Prêmio Camões de Literatura. Estava no Sítio do Pica-Pau Amarelo quando recebeu o telefonema de um amigo lhe informando que havia sido premiado. “Fantástico”, dizia ele, “nunca pensei receber tal prêmio em lugar tão lúdico”. Isso só pode mesmo dar poesia. O Prêmio era o assunto de todos os jornais daquele dia. Para ele era um grande prazer, mas os assuntos do dia foram outros. O temor nas estradas brasileiras, os almoços dominicais com os amigos comunas, a farsesca ditadura no Brasil. Isso só pra começar o nosso papo.

Na pequena cidade uma comitiva nos esperava. Secretária de cultura, prefeito, poeta e artistas locais. Ele sempre sorridente, simpático, encantador, pra dizer a verdade. Sem pudores de estrela, soltou o verbo com a turma empolgada. Falou sobre política, sobre arte, sobre a briga com a mulher que resultou na frase célebre de caneca de lembrançinha: “Eu não quero ter razão, eu quero é ser feliz”. E ninguém conseguia passar incólume ao charme do poeta. Depois do almoço, por educação, a atenciosa produtora ofereceu um lugar para repousar, mas o interesse dele era conversar. Aquelas pessoas que saíram de suas casas, abandonaram seus trabalhos, fizeram o “day off” da poesia para ciceronear mereciam sua atenção, e ele não se esquivou disto. A sobremesa, o cafezinho, o passeio turístico pela cidade. Tudo lhe interessou e suas colocações não foram banais, só por educação. Disserto isso é poesia, eu pensei. Prestar atenção ao poeta-dentista ávido pelo seu olhar, o escultor que conta suas histórias na madeira, o bonequeiro da praça, que lhe prestou um poema em homenagem. Disserto isso dá poesia.

O cafezinho de final da tarde foi na casa dos artistas. Ateliês em meio a bosques verdes, cachorro, crianças. A arte não nasce na galeria. E dá-lhe pau na arte contemporânea. Nunca me senti tão à vontade ouvindo alguém falar sobre o que pensa sobre instalações de corpos. “Quando não se tem arte, se mostra a vida como ela é”. Um cafezinho atrás do outro e entramos nos exemplos pessoais. Aquela altura, a comitiva Ferreira Gullar já compartilhava de certa intimidade, e os assuntos fluíam como para amigos de escola. Só que foi neste momento, quando falou o homem é que percebi que estava em frente ao verdadeiro poeta. As dores só são verdadeiras quando são suas. E cantar as suas dores lhe revelou a verdadeira alma. Sem melancolia, sem tristeza, apenas compartilhou com aquele grupo estranho um pouco da vida. Talvez tenha sido um dos momentos mais sensíveis da vida daqueles que estavam ali. Um poeta falando sobre seus amores, suas dores, suas alegrias e pesares. Momento sem palavras para o resto que ouvia. Foi o amigo Gullar que “deveras humano”, como colocou o poeta local, nos presenteou sendo somente ele mesmo. O tocar na estrela.

À noite, o lugar da palestra estava lotado. Uma pequena biblioteca, com somente algumas edições dos principais autores brasileiros. Mesmo encantada com a cidade, mas cética por natureza, ainda pensei que o evento era por si só um evento. Alguma coisa que tirasse o povo de casa. Mas a recepção foi genuína e calorosa. Talvez nunca havia visto de fato, gente tão interessada em poesia. Gullar sentou-se no palco improvisado, no meio das estantes de livros, e depois de uma emocionada recepção musical, começou a falar. Da mesma forma como conversou com os amigos da tarde, conversou com aquela gente. Sem rodeios, sem eufemismos, sem colocações inúteis. Contou as histórias do Gato Gatinho, do neto que só desenhava animais em extinção, citou os amigos ilustres. Discutiu um pouco de política com um senhor que chamou Hugo Chávez e Che Guevara de “brucutu”. De certa forma, concordou com o amigo entusiasmado. Terminou sem rodeios, perdido no tempo e no calor daquela plateia que assim como eu, estava embebida em sua prosa tão poética.

A última pergunta foi de uma menina, preocupada em saber como é que se faz poesia. Como é que nasce a poesia Seu Ferreira? Sem solenidade, como quem fala de uma receita caseira ele disse: “O poeta é quem anuncia as notícias que não tem importância para ninguém. A flor que lhe assalta com tremendo perfume no meio da noite, a própria noite que nasceu no escuro... A poesia nasce do espanto.”