18 de fevereiro de 2011

CASA VAZIA

"Dragonfly, fly by my window"

Voltar para casa com a certeza de que deveria se mudar. Era isso que ela jamais poderia ter imaginado. E imaginou. Logo que entrou, reconheceu o ambiente, a sala, a mobília, a cozinha, as roupas no closet improvisado. Era o seu lugar, sem ela.
Um amigo havia dito naquela sexta-feira “todos sofrem no final. Inevitável o sofrimento, boneca”. E era verdade. Aquelas palavras penetraram profundamente, não como reveladoras, apenas como palavras certas. Ela calou, sorriu. Um gole de vinho. Um rompimento sempre supõe algo doloroso. Ela só queria poder fazer o movimento sem precisar espalhar essa dor ao mundo. Que fosse algo sutil, como ela mesma se pressupunha. Queria encontrar uma forma para ajeitar tudo, para que esse movimento não espalhasse muita poeira pelo ar, fosse leve e preciso.

Quando entrou em casa já não era mais ela mesma quem entrava. Era um desejo contrário à casa, contrário a anos de construção. E aí já começava a dor. De certa forma, teria de ser. Desconstruir o lar. Seu casamento, suas coisinhas, as coisinhas da vida conjunta. E as coisas grandes também. O que dava alento era acreditar que aquela desconstrução não era simplesmente acabar com tudo que já havia sido feito. As coisas boas sempre ficam, não é mesmo? É mesmo. Isso ela sabia que era algo imensurável, era a providência divina do casamento. Os anos alcançados juntos.

O movimento da transformação pode acontecer de diversas formas. Muitas pessoas o processam imediatamente, são tocadas por um clic mágico, um fato, uma visão, qualquer coisa que as façam arrumar as malas, ou esquecê-las no armário. Para outras, é algo que vai se desenhando, ganhando forma, corpo, dimensão de transformação. E o que importa, na verdade, é como isso acontece. Ela acreditava nisso. Que o como das atitudes está diretamente ligado ao caráter. E que qualquer transformação que impulsionasse um ato impensado, tomado como decidido de uma hora para outra, fosse leviano e fugaz. Porque na vida tudo é planejado. O planejamento vem da natureza. E o movimento natural de tudo é seqüencial. De tudo que pudesse ser naturalmente processado por ela, do seu prisma de ver o mundo. Porque já havia tentado explorar coisas mais dinâmicas, a física quântica, por exemplo, e considerar que os movimentos poderiam não ser seqüenciais, lineares. Tempo e espaço em dimensões inimagináveis. Mas foi difícil. Pois ela era do tipo de gente que identificava tudo a partir do mesmo processo gradual e contínuo que a natureza faz. A semente, germinação, broto, planta, crescendo. Folhas que caem e morrem. Um ciclo. A água que corre da nascente para a dormente. Era assim que sentia. Por isso a transformação deveria ser lenta, processada com leveza e exatidão. Deveria sentir que tudo estava sendo natural. E natural era bom, era confortável, era correto.

Pensou por dois segundos que seria custoso demais separar livros, discos, objetos, gravuras. Mas logo ocorreu que isso não importava. Nada. Precisava sim da escrivaninha no canto do quarto, da panela de ferro na cozinha, do som (isso poderia gerar impasses) e de pequenas coisas que a traduzisse. Só isso. O mais difícil mesmo seria começar. Dizer, explicar a sua decisão. Falar porque estava indo embora.
Não é uma questão pessoal. Não é uma questão afetiva. Não é sexual. É... Natural. Precisava manter a calma, a serenidade. Não deixar que culpa entrasse nessa história. Porque onde há amor, não pode haver culpa. Era o conforto que buscava. E começou a considerar que isso ia ser melhor pra ele também. Depois de alguns anos juntos, parecia que o encantamento estava apagado, escoado, desfocado. Podia ser um indício de que as coisas não deveriam continuar. Ou poderia ser apenas a evolução natural do casamento. Sim, poderia. Disserto era. Mas o fato é que ela sentia que dava para prolongar o estado de encantamento por mais tempo na vida. Por que não? Ele também precisava. Ele era um artista. Precisava de matéria prima. Ela o via apagado. Vislumbrou na possibilidade da mudança, que ele podia ser feliz também. É claro que podia! Porque acreditava mesmo que onde há amor, as coisas dão certo. Um lado Polyana de ser.

O fato de estar apaixonada por outro homem não era o foco dessa mudança. De maneira nenhuma, por isso ela não revelou nada. Sabia que isso era uma coisa sua. Que nascera – fato que odiava admitir- da mudança de ares, da mudança de cidade. Talvez tivesse começado um ano antes, quando chegara ao Village pela primeira vez. Cada esquina a transformou, sem dúvidas. A incursão pelo R&B, pelo jazz, pela possibilidade de ser uma outra que vivia também dentro dela. Uma parte que precisava ir um pouco mais adiante. Que queria escrever, que queria viajar, que queria conhecer tudo. De arte, literatura, cinema, de pessoas, gastronomia, vinhos, de desprazeres também. Ela tentava isso com ele. Sempre tentou. E a troca foi boa, por um tempo. Sentia-se esgotada. Na verdade era duro admitir isso. Aí veio casa, bairro, cidade, amigos, tudo novo. E então já não conseguiu evitar o pensamento que seria muito bom ter outra vida. Ser ela mesma tudo de novo.
Parecia meio óbvio. Era, na verdade. Ela começou aos poucos. Cursos, trabalho. Os textos estavam explodindo. Inspiração pelo novo. Que natural isso, não? Sim, era assim que a vida se mostrava. No movimento exato do ciclo.
A paixão nova não estava nos planos. Aliás, quando é paixão mesmo nunca está. Traz a ansiedade, a dúvida, à incerteza. Mas é poderosa. Um estopim para a transformação. Desde que o conheceu as coisas foram ficando cada vez mais claras. Ele ajudou a mostrar uma nova opção. A sua presença tornou possível. Era isso que significava estar apaixonada naquele momento. Sabia do fundo do coração, que uma paixão poderia sempre ir além, ser bem mais. Mas, também não a admiraria se não fosse. Porque agora ela era ela, ampla e infinita dentro de si. Isso era encorajador, porque a paixão também encoraja. Era ela querendo ser, vivendo e fazendo para ser.
Queria que ele (esse novo ele em sua vida) não sentisse tudo isso que estava acontecendo. Porque ele fazia parte dos acontecimentos, então deveria ser natural.  Não contaria seus planos, ia apenas guardar o momento novo para compartilhar mais além, mas bem perto.

Então estava decidido. A casa já não era ela. E ela já era livre. Livre para tomar um passo adiante, para arrumar as malas. Para explicar o que estava acontecendo. Estava livre e certa. Certa de que iria trabalhar com a dor. Iria ter que enfrentar muitos monstros ainda. Mas certa.
Primeiro sentou no sofá, respirou fundo, soltou o ar devagar. Observou cada detalhe de tudo. Não queria melancolia, queria certeza. Depois levantou, andou pela casa. Pensou os melhores pensamentos do mundo, para que ficasse ali um pouco dela. Para que ficasse só o melhor que ela poderia deixar. É claro, chorou. Um pouco, bonito. E esperou. O dia que ele voltasse pra casa, e ela iria deixar a casa vazia. Não dela, mas do vulto do desejo que ela havia se tornado dentro da casa.